O Apelo de Roger Machado expõe grande desafio

Redação

novembro 9, 2024

Em meio a uma temporada marcada por desafios e vitórias no Campeonato Brasileiro, o técnico Roger Machado, do Internacional de Porto Alegre, se tornou novamente um dos principais vozes a questionar a falta de representatividade negra na elite do futebol brasileiro. Após a vitória de sua equipe sobre o Fluminense, no último dia 8 de novembro, ele se manifestou com uma fala que vai além do campo, chamando atenção para uma questão que persiste no esporte e na sociedade como um todo: a sub-representatividade de negros e pardos no futebol, especialmente entre os treinadores.

“É um tema sempre importante, é uma data importante da Consciência Negra, não deveria ser abordado apenas nesse mês. Penso que a gente fez muitas evoluções, o país começou a olhar de alguma forma para essa questão, porém vejo que os avanços são pequenos. Para mim, o futebol amplifica e aponta como somos como sociedade”, disse Roger, refletindo sobre o que considera ser uma evolução ainda insuficiente no combate às desigualdades raciais no Brasil.

A Realidade do Futebol Brasileiro: A falta de técnicos negros na Série A

O Brasil, com sua diversidade racial, continua a apresentar um retrato dissonante quando se trata de representação nas funções de comando, especialmente no futebol. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 mostram que 45,3% da população brasileira se considera parda e 10,2% preta. No entanto, uma pesquisa realizada pelo mestre em gestão de políticas públicas e doutorando da Escola de Educação Física e Esportes (EEFE) da Universidade de São Paulo (USP), Donald Verônico Alves da Silva, revelou uma discrepância alarmante quando se trata da presença de técnicos negros na elite do futebol nacional.

De acordo com a análise de Donald, que acompanha a evolução da sub-representatividade da população negra entre treinadores e auxiliares da Série A, não havia nenhum treinador negro comandando um clube da primeira divisão do Campeonato Brasileiro em 2023. Em relação aos auxiliares, apenas 17% foram identificados como pretos ou pardos. Este dado é ainda mais relevante quando se considera que a população negra brasileira corresponde a mais de 55% da população total, o que revela a profunda desigualdade no campo, onde negros e pardos dominam como jogadores, mas têm pouca presença nas bancadas técnicas.

A pesquisa de Donald, que analisa mais de mil profissionais (treinadores, jogadores e auxiliares técnicos) da Série A, utiliza uma bancada de heteroidentificação para medir a representatividade racial no futebol. Ela indica que, enquanto a maioria dos atletas é negra ou parda, a liderança técnica segue majoritariamente branca, confirmando um padrão de sub-representação que também é evidente em outras áreas da sociedade brasileira, mas particularmente impacta o futebol, dado seu papel simbólico e econômico no país.

O Reflexo da Sociedade no Futebol

Roger Machado, ao comentar sobre a data da Consciência Negra, faz uma crítica que extrapola o futebol. Ele ressalta que a sociedade brasileira, apesar de algumas evoluções, ainda avança lentamente em questões de igualdade racial. “O futebol amplifica e aponta como somos como sociedade”, afirmou o técnico, sugerindo que, ao olhar para o que ocorre nas lideranças do futebol, podemos entender melhor as limitações estruturais e culturais que persistem no Brasil.

O futebol é, sem dúvida, um espelho da sociedade brasileira: enquanto o campo de jogo é um dos poucos lugares onde a presença de negros é esmagadora, as funções de comando e liderança ainda estão restritas a uma minoria. Essa disparidade entre a composição racial dos jogadores e dos treinadores é um reflexo de um sistema mais amplo que, historicamente, limita as oportunidades para a população negra nas esferas de poder e decisão.

Apesar de Roger Machado ser um dos poucos exemplos de técnicos negros com destaque, sua ascensão não veio sem desafios. Ele mesmo já apontou que, em sua trajetória, foi necessário mostrar muito mais que seus colegas brancos para ser reconhecido. Isso se alinha à ideia de que o futebol, como qualquer outra área de destaque social, não é isento de preconceito. Embora a figura do “treinador negro” esteja começando a ganhar mais visibilidade, a verdade é que o mercado continua a ser mais receptivo aos profissionais brancos, muitas vezes ignorando o potencial e a experiência de técnicos negros que poderiam liderar com sucesso.

O Papel da Pesquisa e da Educação no Combate à Sub-representatividade

A pesquisa de Donald Verônico, que segue investigando a sub-representatividade racial entre treinadores, auxiliares e jogadores no futebol brasileiro, ganha importância cada vez maior. Com um doutorado em andamento na USP, em colaboração com a Universidade Stirling, na Escócia, sua pesquisa se dedica a estudar o racismo no futebol, um problema que vai além da simples falta de negros nas funções de liderança.

“A sub-representatividade de treinadores negros na elite do futebol é uma realidade que precisa ser encarada de frente. A ideia de que ‘não existem bons técnicos negros’ é um mito, uma forma velada de racismo estrutural”, afirmou Donald em entrevista recente. Ele acredita que a mudança depende não só da conscientização, mas também de políticas afirmativas dentro dos clubes, federações e entidades como a Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Sua pesquisa sugere que a solução para esse problema passa por uma ação mais incisiva do poder público e privado, além de uma transformação cultural nos clubes. “Precisamos começar a olhar para o futebol como um campo de desenvolvimento não só técnico, mas também humano, em que a diversidade seja uma prioridade”, defende o pesquisador.

O Futuro: O que precisa mudar?

A fala de Roger Machado e os dados apresentados por Donald Verônico são apenas alguns exemplos de como o futebol brasileiro ainda precisa de uma profunda transformação quando se trata de representatividade racial. Embora o esporte tenha conquistado avanços em algumas áreas, como a participação dos negros nas categorias de base e no time principal, as funções de liderança técnica, como o cargo de treinador, continuam sendo dominadas por brancos.

O Brasil é um país mestiço, de grande diversidade racial, mas quando se trata de decisões dentro dos clubes de futebol, essa diversidade não se reflete de forma proporcional. A sociedade como um todo, e o futebol em particular, precisa de mais do que boas intenções: precisa de ações concretas para garantir a inclusão de negros e pardos nas funções de comando.

O apelo de Roger Machado, ao destacar que este é um tema que não deve ser tratado apenas no mês da Consciência Negra, serve de alerta. A reflexão sobre a falta de treinadores negros não é uma questão de “data comemorativa”, mas um desafio contínuo de superação do racismo estrutural que persiste no esporte e na sociedade.

Enquanto o futebol brasileiro continua a ser palco de disputas intensas dentro de campo, a batalha por representatividade fora dele, em especial nas funções de liderança técnica, segue sem grandes avanços. O futebol, mais do que qualquer outro esporte no Brasil, reflete as desigualdades da sociedade, e só por meio de um esforço coletivo será possível transformar essa realidade. O futuro do futebol no Brasil, e a construção de uma sociedade mais justa, passam, sem dúvida, por ações concretas em direção à inclusão e à igualdade racial.